
Imagine a cena: um homem de idade, religioso, respeitado, de repente fica sem fala. Não é apenas um silêncio meditativo — é um silêncio imposto. Os vizinhos falam, a família pergunta, e ele apenas responde com gestos e expressões. O nome dele? Zacarias. O diagnóstico que ouso sugerir, com a licença da Teologia e um pouco de ousadia médica: um acidente vascular cerebral isquêmico (AVC isquêmico), manifestado por afasia. Se fosse nos nossos dias, bem que poderiam ter nos trazido para emergência neurológica do HGF (Hospital Geral de Fortaleza)
E é fascinante pensar no tempo de evolução. Nove meses. Exatamente o tempo entre o anúncio celestial de que teria um filho até o nascimento do pequeno João Batista. E lá estava ele, o “nosso paciente”, reabilitando pouco a pouco, como tantos que vemos hoje nas enfermarias.
O evangelista que nos conta isso é Lucas. Justo ele, o médico. Alguém que parece ter tido aquele olhar clínico, sensível às nuances da doença. Nada mais natural que fosse ele a registrar com detalhes o episódio. E não deixa de ser curioso: em certa cena do filme sobre Paulo, Lucas aparece como aquele estudioso, atualizado, quase um “residente” com livro de cabeceira — reconheci ali um colega de profissão, desses que gostam de ler guidelines antes de dormir.
E há uma passagem ainda mais tocante no mesmo filme: a cena da garotinha que Lucas trata, fundamentando-se em um caso semelhante que havia visto na ilha de Rodes. É o retrato perfeito do médico que aprende, observa, compara e aplica. O saber acumulado na beira do leito transformando-se em cuidado concreto. E isso ajuda a entender por que o relato de Zacarias tem tanto sabor de semiologia: só um médico, com esse olhar treinado, poderia descrever assim.
Mas voltemos à alta hospitalar de Zacarias. O trecho mais bonito, e para mim mais clínico, é quando a família pergunta, por acenos, como queria chamar o menino. Acenos! Isso, em nosso linguajar neurológico, é pantomima. Pura semiologia. E o paciente, sem fala, pede uma tabuinha e escreve: “O seu nome é João”. A família se maravilha — e nós também, porque sabemos o quanto pode ser espetacular acompanhar a recuperação de linguagem após um AVC. Aliás, o uso da tabuinha foi, sem querer, uma excelente estratégia de reabilitação: transformar a ausência de fala em treino de escrita e expressão. Lucas, se fosse fonoaudiólogo, teria aprovado.
E detalhe importante: naquele tempo não havia trombolítico, nem trombectomia mecânica. Mesmo assim, Zacarias teve uma evolução excelente. O que nos lembra de tantos pacientes que, apesar de todas as limitações de recursos ou da ausência de terapias de ponta, surpreendem com recuperações que beiram o extraordinário.
E assim, em pleno Evangelho, está ali uma cena que poderia ser de qualquer enfermaria de neurologia: o silêncio, a angústia, os gestos, a tabuinha, a reabilitação, e por fim a palavra escrita que devolve identidade e sentido. Neuro em cena, com toda a poesia que o tempo é capaz de acrescentar.
E assim encerro meu primeiro post, mostrando o tom que pretendo dar a este espaço: leveza, reflexão e um olhar médico-literário. Até a próxima cena da Medicina em Reflexo.
Basílio, estou muito feliz em ler o seu primeiro post!
Você conseguiu unir de maneira brilhante a narrativa bíblica, a observação clínica da medicina.
Parabéns como trouxe Zacarias para dentro de um cenário neurológico contemporâneo de forma criativa, instigante e, sobretudo, humana.
Gostei muito da analogia entre a afasia descrita no Evangelho e os pacientes que vemos diariamente.
Também achei muito boa a lembrança de Lucas como médico-escritor, atento à semiologia e às sutilezas da experiência humana diante da doença.
Seu texto mostra leveza e profundidade ao mesmo tempo. Estou certo de que esse espaço terá um impacto muito positivo, tanto para colegas médicos quanto para a comunidade em geral
Parabéns pela estreia! Já fico no aguardo das próximas reflexões.
Professor, muito obrigado pelas palavras generosas. Fico especialmente feliz porque esse era exatamente o espírito que eu queria transmitir: trazer a medicina para dentro das narrativas humanas, mostrando que ciência e vida caminham juntas.
Sua leitura me anima a continuar nesse projeto, buscando sempre leveza e profundidade, como o senhor destacou.
Saber que um mestre meu acolhe essa estreia com tanto incentivo é motivo de grande alegria.
Fico feliz meu caro, afinal, o propósito foi atingido com louvor! Me sinto honrado em poder presenciar tão nobre e necessário projeto.
No aguardo desde já dos vindouros textos!
É realmente espetacular analisar o relato bíblico à luz de um olhar clínico e cuidadoso! Sem dúvida, confesso que nunca havia olhado imaginado todo esse momento vivido pelo personagem em questão.
A análise do Dr. Basilio mostra um rigor preciso ao descrever todos os elementos presentes na narrativa, os dramas ali representados e o fator temporal pertinente ao processo.
Isso nos leva a uma leitura mais cuidadosa da Escritura, entendendo além de um olhar frio e cauterizado pelo romantismo das narrativas heroicas as quais somos tentados a enxergar. Assim, veremos os personagens bíblicos cada vez mais reais, compostos por um corpo sujeito aos desconfortos de uma saúde comprometida.
Basílio, que texto fantástico, meus parabéns!
Gostei demais da forma como você uniu Neurologia e a Bíblia em uma narrativa leve e coerente. Já dá pra sentir que esse blog vai ser especial. Parabéns pela estreia e que venham muitos outros posts sobre a neurologia no nosso cotidiano!
Basílio, achei espetacular! Muito legal esse paralelo da neurologia atual com um caso relatado no texto sagrado! Parabéns!
Retrato da medicina translacional do tempo. Interessante que mesmos com os avanços tecnológicos que permitem tratar de modo mais efetivo algumas condições, a humanidade permanece o pilar do cuidado
Parabéns Dr Basílio!
Informação, conhecimento e a visão tão importante do que é na verdade a totalidade da relação médico paciente
.Somos apenas instrumento!
Esperando o próximo!
Texto incrível, Dr.! Parabéns pela estreia! Ansioso pelos próximos posts.
Meu amigo Basílio, que estreia!!!
Parabéns!
Confesso nunca havia enxergado a neurologia de forma tão clara neste evangelho.
Você conseguiu acrescentar saber em cima de um evangelho tão rico de ensinamentos.
E que narrativa prazerosa de ser lida!
Parabéns!!!
Parabéns pelo texto Basílio.
O paralelo entre o texto bíblico e o olhar atento de um excelente neurologista expressos brilhantemente.
Muito bom ler e refletir sobre teologia e neurologia.
Abraço
Professor, parabéns pela originalidade e sensibilidade! Tenho certeza que esse será um espaço de muito aprendizado. O paralelo entre a afasia de Zacarias e a realidade de tantos pacientes que acompanhamos nas enfermarias é de uma riqueza imensa.
Aguardo a próxima postagem!
Adorei o texto, professor! Acho eu mesma que extender a medicina para além das paredes do hospital é trazer mais medicina e cuidado para os nossos pacientes. Um abraço!
Parabéns pelo texto, trazendo passagens bíblicas para nossas vivencias neurológicas com esse paralelo entre neurologia e evangelho. Abraço.
Mestre Basílio, meus parabéns, texto fantástico e excelente reflexão.
Parabéns meu amigo.
Prezado Dr. José Basilio
Que texto excelente! Muito agradável de ler!
Excelente texto, Dr. Basilio! Sempre muito interessante cientificamente a avaliação de quadros clínicos datados de épocas em que a propedêutica era precária. Faz-nos pensar em como seria o resultado com os recursos de hoje. E, também, em quais ferramentas teremos um dia.
Abraço e sucesso!
Basílio , que texto lindo ! Vivo, preciso, atual e humano! Parabéns !