Entre a peste negra e Shakespeare: os humores em cena

A primeira cena de O Sétimo Selo (1957), de Ingmar Bergman, é um golpe de medo. Um cavaleiro medieval joga xadrez com a Morte, à beira do mar, sob o céu pesado da peste negra. Nenhuma reza, nenhuma medicina era suficiente diante do inimigo invisível que dizimava cidades inteiras. Nós tivemos esses sentimentos bem recentemente.

Até então, a lente para compreender o corpo e o mundo era a teoria dos quatro humores, herança da filosofia médica de Hipócrates e Galeno. Os humores não serviam apenas para explicar a saúde e a doença, mas também a arte, a literatura, o temperamento humano.

Eles fluíam pelo corpo através das veias – o que na época não eram vistas como hoje, pois a ideia que temos hoje de sistema circulatório apenas surgiu com William Harvey, em 1628, cada qual com funções próprias:

  • Sangue – úmido e quente, nutria a carne, produzido no fígado.
  • Fleuma – fria e úmida, alimentava o cérebro, lubrificava as articulações, permitia o movimento.
  • Bílis amarela – ardente e seca, facilitava os movimentos expulsivos do intestino.
  • Bílis negra – seca e fria, promovia o apetite e nutria ossos e baço.

As diferentes proporções desses fluidos definiam os temperamentos. Shakespeare fez deles matéria-prima para seus personagens. Em cada obra sua era possível identificar um desses tipos. Otelo, por exemplo, é o tipo colérico: ardente, inflamável, levado a extremos pela suspeita. Não à toa brada:

“Ó sangue, sangue, sangue!
Agora, por este céu ardente acima de nós,
Dentro de poucos dias farei com que a esposa infiel pague caro;
E em breve o meu coração, já endurecido como o mármore,
Não se abrandará até que eu a reduza a pó.
Oh, sangue, sangue, sangue!”

Laurence Fishburne  contracena em Othello (1995) com a atriz Irène Jacob, que interpreta Desdêmona

Essa teoria humoral orientou a medicina hipocrática e moldou o ensino de Galeno. O corpo saudável estaria em eurasia; o doente, em discrasia. (Aliás, você se lembra de já ter visto essa palavra em algum laudo? Pois é, ela vem daí.)

Naquele tempo, as doenças não tinham individualidade. Pneumonia não era “pneumonia”, nem diabetes era “diabetes mellitus”. Eram estados transitórios de desequilíbrio: uma doença podia transformar-se noutra conforme a dança dos humores. O tratamento, então, consistia em equilibrar esses fluidos — sangrias para reduzir o excesso, purgantes para expulsar o que sobrava. Diagnosticar não era o mais importante; prognosticar, sim. O bom médico era o que acertava o futuro e oferecia tranquilidade.

Mas a peste negra do século XIV desmontou essa filosofia de vez. Como explicar milhares morrendo em poucos dias, sem distinção de temperamento? Como defender sangrias e purgantes diante de um inimigo tão rápido e implacável? A teoria dos humores, que por séculos sustentou tanto a medicina quanto a filosofia, ruiu diante da força da epidemia.

E assim, entre sombras, pragas e humores, a cena se abre para o nascimento da medicina como a conhecemos: uma ciência obrigada a se reinventar quando as respostas antigas já não davam conta.

2 comentários em “Entre a peste negra e Shakespeare: os humores em cena”

  1. Excelente exposição que reúne historia da medicina em busca de entender os desdobramentos da vida. Uma aula sobre as questões internas do corpo mostrando como os antigos lidavam com o conhecimento a eles disponível. Um contraste entre antigas crenças e novos desafios é o cerne do texto apresentado nos levando a entender como curiosamente a medicina investiga os mistérios do corpo frente a desafiadoras e implacáveis ondas de epidemia que desconstroem para construir novos rumos.
    Ainda, somos presenteados com as curiosidades em torno das expressões de arte na história que transmitiram aspectos do conhecimento exalando esses mistérios do corpo humano, mostrando que nada é por acaso, seja na estética, na filosofia, seja na vida que abarca tudo isso.
    Parabéns ao Dr. Basílio por nos levar à reflexão histórica e técnica da medicina de modo relevante, objetivo e didático! Nos levando a entender mais de nós mesmos enquanto seres humanos.

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