
Estudantes de Medicina, é com muito prazer que inicio esta aproximação com a sua geração trazendo conselhos e reflexões sobre nossa práxis de Medicina. Reconheço que muitos dos insights que vou lhes passar adquiri-os incólumes ou resultou de mudanças radicais de pensamento ao longo de 20 anos – tempo suficiente para remodelação do colágeno em média 4 vezes. Com essas cicatrizes estáveis quero vos inocular com uma bela visão de Medicina. Estamos no que corresponderia ao ano 2.484 da Era de Hipócrates. Tal qual naqueles tempos áureos da Grécia, ainda praticamos a Medicina com tríplice afinidade por “ciência, ginástica e teologia”. Recomendamos a prevenção de doenças por meio de prática de atividade física. Consolamos nossos doentes sem esperança afirmando que nosso trabalho não tem exatidão e que podemos buscar um auxílio divino.
No que se refere à ciência, a verdade é fragmentada e resulta de uma construção coletiva da qual ainda participamos. Tal qual os retalhos espalhado do corpo de Osíris (deus egípcio da fertilidade) e recuperados por Ísis (deusa da maternidade e da cura), assim se dá o trabalho da construção do conhecimento. Após essa tragédia, sobreveio Hórus como filho desse casal divino. Hórus, como síntese da verdade e da busca, representa visão que tudo observa. Justo o olho dele tradicionalmente era grafado no canto superior esquerdo de nossos receituários. Como o médico (Ísis) recompõe pedaços de sintomas (Osíris) para gerar um diagnóstico coerente (Hórus). De fato é muito laboriosa a busca pelo diagnóstico, outrossim a acurácia não é tudo. Fuja do reducionismo técnico do estilo Doctor House.
Algumas marcas pessoais não devem ser negligenciadas por um médico em qualquer época de sua vida, mas essa semente deve ser bem cuidada o quanto antes. Recorro mais uma vez a William Osler para delimitar tais características indispensáveis em nossa personalidade: imperturbabilidade e equanimidade.
“Imperturbabilidade significa frieza e presença de espírito em todas as circunstâncias, calma em meio à tempestade, clareza de julgamento em momentos de grave perigo… Nas emergências, nos acidentes súbitos, em acalmar o medo e restaurar a confiança, ela tem o valor de um agente terapêutico de primeira ordem. Já a equanimidade ocupa seu lugar quando lidamos com as provações da vida, ao dar más notícias, ao revelar a um paciente o conhecimento de uma enfermidade grave ou fatal…”
Considero muito importante o conceito que trago comigo de “franqueza acolhedora”. Não se pode furtar da obrigação de dizer a verdade, explicar as orientações corretas, contudo isso deve estar conectado com a esperança, empatia, cumplicidade. Sempre mantenha o olhar terno, apesar de todas as circunstâncias. Evite corrugar sua fronte quando estiver olhando um exame – nem que para isso tenha que manter a toxina botulínica sempre em dia.
À semelhança de nosso patriarca Jacó nos sentimos tentados a fugir de tudo, porém sempre teremos uma batalha contra algo mais forte que nós, em que nos sentimos sozinho. Guerras essas que, mesmo com a persistência, algumas serão com derrotas e amarguramos o sentimento de que poderíamos ter feito diferente. À semelhança do Dr. Rieux, médico protagonista do livro A Peste (1947), de Albert Camus, sempre lutamos mesmo sabendo que a peste (como metáfora da morte ou da condição humana) nunca será vencida definitivamente.
Vivemos entrincheirados numa batalha contra determinantes sociais seculares que ainda perturbam a saúde pública, os quais são munidos de nossos inimigos invisíveis: mutações genéticas, vírus, bactérias, protozoários e inflamações autossustentadas. Diante de uma torre negra que poderia nos perturbar, no decorrer do tempo, vamos adquirindo pais e irmãos. Sim, pelo tempo de nosso treinamento temos contatos com diversos professores dos quais adquirimos ensinamentos para toda a vida. Eles significam para nós como “pais de virtudes”, enquanto o genitor “o pai do corpo” – conceito medieval. Assim Cícero descreveu: “Os pais dão a vida, mas os professores dão o modo de viver bem”. Para mim os tenho nesse rol personagens de grandeza a exemplo de Dr. Ciarlini, Dr. João José Carvalho, Dr. Otoni. Em vários momentos vez por outra você se lembrará de algum ensinamento de um de seus mestres, quase como uma transmissão genética sem mutações.
Também me lembro das recomendações do Dr. Otho Leal Nogueira quando defendia (e ainda defende) que nos prontuários poderíamos encontrar informações valiosíssimas para se chegar ao diagnóstico. Desfechava denominando o prontuário como uma bíblia. Com a devida vênia e com alguma ousadia atualmente prefiro recomendar a seguinte em relação ao prontuário: – Canonize-o. Preencha-o com informações acuradas, verossímeis. Não se acomode com o copiar-colar. Aceite que a doença evolui e muda, daí o que valia ontem não vale mais hoje. Exponha uma impressão diagnóstica, delineando uma linha de raciocínio. Não motivado para evitar complicações jurídicas, mas para privilegiar o cuidado do paciente com informações refinadas.
Seja predisposto à aprendizagem sempre e nunca perca o deslumbramento ao constatar a teoria da terapêutica funcionando ao melhorar a vida do doente, ao curar a infecção, ao mitigar a febre, ao aliviar a dor, ao prolongar a vida. Esse encontro entre o nosso conhecimento e a dor dos enfermos é revestido de uma magia que resiste ao tempo. O quanto a Medicina tem evoluído também reflete o simultâneo desenvolvimento da sociedade moderna. Em certa medida contribuímos para isso ativamente. Apegue-se a isso. Repila qualquer conduta malfazeja de pessoas infiltradas no nosso meio que contrarie o primum non nocere.
Estude e continue estudando e compartilhando o que aprendeu. O conhecimento dividido pode alcançar pessoas sob cuidados de colegas. O nosso conhecimento deve ser tratado como algo coletivo. Sistematize suas informações obtidas com o que se vê na rotina. Eu ouvia sempre do Dr. João José nas visitas da Unidade de AVC que, se você não sistematizar o que aprende, daqui a alguns anos terá apenas insights, não conhecimento sólido. De fato um grande diagnosticador que alia anos de experiência a vastos recursos de conhecimento sempre será uma pessoa confiável. A medicina clínica como arte fundamenta-se no uso de exemplos concretos e não apenas em pensamentos abstratos.
Ser médico é uma jornada em que nos inserimos e somos absorvidos pelo cansaço, pela despersonalização e indiferença se não nos mantivermos fieis aos ensinamentos. Precisamos valorizar sempre a lealdade à missão a que nos propomos de maneira imperturbável e serena. Assim encerro este primeiro solilóquio e já alimentando as expectativas para o próximo encontro.
Caro (a) esculápio (a): Noblesse oblige
Belo texto Basilio. Obrigado pela referência. Feliz por ter contribuído de alguma forma para a sua formação.
Sempre muito acertivo! O texto exprime verdades plenamente aplicáveis a todo vocacionado seja em qual área estiver.
Verdades atemporais expressas em palavras vividas para o contorno de uma vocação viva e atuante no cuidado e manejo clínico!
Excelente texto, meu amigo! Entre trocadinhos, bom humor e dados históricos, temos um belo texto, que deve ser lido por todos os médicos, especialmente os mais jovens!
Abraço!
Que belo texto!
Nos anima a manter viva a essência da medicina!
Obrigado, grande Basílio.
Como pude ler um escrito tão rico e ter me esquecido de comentar! Excelente, Basílio. Ser médico é, de fato, estar em constante formação.