
A lembrança mais remota que tenho de Napoleão Bonaparte vem de meu irmão José Maria, sempre entusiasmado, dizendo que ele era excelente aluno em História, Geografia e Matemática, além de dotado de vocação militar. Porém, com o tempo, aprendi também sobre a fuga da família real portuguesa para o Brasil, episódio que elevou nossa condição de colônia a sede do Império. Mas não é esse plano imperialista que pretendo abordar hoje.
Prefiro olhar para Napoleão Bonaparte, o arquivilão do Ocidente, cuja sede de poder redesenhou mapas, coroou batalhas sangrentas e fez reis e povos tremerem diante de sua ambição. Ainda assim, seus desfechos me levam a vê-lo mais como um grande trapalhão, um personagem malogrado.
Quero convencer meus amigos leitores de que há semelhança entre esse tirano e personagens como Dom Quixote, o cavaleiro que lutava contra moinhos de vento, ou Ícaro, que sonhou voar alto demais e acabou despencando quando suas asas de cera derreteram ao calor do sol. Isso mesmo: Napoleão não foi derrotado apenas por homens, mas, sobretudo, por desastres naturais, que barraram seus projetos de dominação.
A historiografia destaca que sua derrocada final começou com o rigoroso inverno russo, quando temperaturas de até –30 °C fizeram sucumbir soldados e cavalos à fome, ao frio e às doenças. A retirada se transformou em tragédia: ataques de guerrilheiros russos e emboscadas do exército czarista dizimaram ainda mais as tropas. No fim, apenas cerca de 10% do exército inicial sobreviveu. Essa catástrofe minou o mito da invencibilidade napoleônica e abriu caminho para a Sexta Coligação, que o derrotaria em Leipzig (1813) e, mais tarde, em Waterloo (1815).
Mas esse não foi o primeiro desastre natural a cortar as asas desse Ícaro moderno. Antes do gelo russo, uma epidemia de febre amarela já havia frustrado seu intento de erguer um império francês na América. A doença, endêmica no Caribe, devastou o exército francês, cujos soldados não tinham imunidade. Napoleão enviara reforços para segurar a colônia de São Domingos (atual Haiti), mas a mortandade arrasou suas tropas. A derrota significou não só a perda da ilha, mas também a inviabilidade de manter a vasta Luisiana, que acabaria vendida aos Estados Unidos.
Essa cena da história, em que um vírus assume papel decisivo, nos convida a imaginar como poderia ter sido o continente americano sob uma colonização francesa mais robusta. Seria como viver numa narrativa alternativa de O Homem do Castelo Alto, em que os países do Eixo saem vitoriosos na Segunda Guerra.
Concluo reforçando que nossos verdadeiros inimigos não respeitam fronteiras nem divisas. Quando epidemias se impõem, as mortes, as perdas e as tragédias atravessam passaportes e bandeiras. Peste, febre ou vírus: todos avançam indiferentes às disputas humanas, lembrando-nos de que as maiores batalhas da história foram — e ainda são — travadas contra adversários invisíveis.
Leitura sugerida: Epidemia e Sociedade: Da peste negra ao presente, de Frank M. Snowden.
Um bom texto é aquele que nos deixa com vontade de ler mais. Seu texto é assim! Muito bom mesmo!
Mais um texto excelente. Fluido e dinâmico, muito bem escrito.
Parabéns!
“Assim jazem os orgulhosos, não em cruzes de ouro, mas em estacas de latão.” Todo déspota uma hora é vencido, seja pela natureza ou por sua própria natureza.
Fantástico, imaginei um romance com um império francês transatlântico!